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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

CARTA DE UM CONTRATADO




mulher de Angola  de autor não identificado





De António Jacinto,  poeta, (o branco mais negro de Angola)







Eu queria escrever-te uma carta amor...

Eu queria escrever-te uma carta amor,
uma carta que dissesse deste anseio de te ver,
deste receio de te perder,
deste mais bem querer que sinto,
deste mal indefinido que me persegue,
desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta amor,
uma carta de confidências intimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti, dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como diloa,
dos teus olhos doces como maboque,
do teu andar de onça
e dos teus carinhos que maiores
não encontrei por aí...

Eu queria escrever-te uma carta amor,
que recordasse os nossos tempos na capôpa,
nossas noites perdidas no capim,
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos,
o luar que se coava das palmeiras sem fim,
que recordasse a loucura da nossa paixão
e a amargura da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta amor,
que a não lesses sem suspirar,
que a escondesses do pai Bombo,
que a sonegasses da mãe Kieza,
que a relesses sem a frieza do esquecimento,
uma carta que em todo o kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...

Eu queria escrever-te uma carta amor,
uma carta que ta levasse o vento que passa,
uma carta que os cajús e cafeeiros,
que as hienas e palancas,
que os jacarés e bagres pudessem entender;
para que se o vento a perdesse no caminho, 
bichos e plantas compadecidos do nosso pungente sofrer;
de canto em canto, de lamento em lamento,
de farfalhar em farfalhar,
te levassem puras e quentes 
as palavras ardentes ,
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...

Eu queria escrever-te uma carta....

Mas ah! Meu amor,
eu não sei compreender ,
porque é, porque é, porque é meu bem
que tu não sabes ler....
E eu... Oh! Desespero!...
Também não sei escrever...

vocabulário
tacula: madeira avermelhada
dilôa: barro escuro, lôdo
macongue: fruta de pôlpa doce
aboque:fruto azedo
capôpa: pequeno  riacho


António Jacinto, 1924-1991 - poeta e escritor angolano, de origens em Alfandega da Fé, Bragança, branco de raça,  negro de coração, foi talvez, o poeta e escritor branco,
mais negro de Angola; nasceu em Luanda, mas registado no Golungo alto  e faleceu em Lisba.
Foi sepultado em Luanda.
.
Contestatário politico esteve exilado de 1960 a 1972  no tarrafal (prisão politica em Cabo Verde)
Após a independência foi ministro da cultura no governo de Agostinho Neto.

Porque África em geral e Angola em particular possui um feitiço que nenhuma mézinha cura,
de quando em vez  a ela e aos seus dedico espaço neste blog. Afinal, foi lá que cresci!...
E é dela esta saudade magoada que o vento por vezes teima em trazer-me com o seu cheiro
a terra molhada, a terra magoada.
A todos os leitores e em especial aos que em Angola me lêem deixo...
O meu abraço e o meu afeto.

1 comentário:

  1. Olá!
    Linda sensibilidade do autor em ler o mundo! Lindo teu carinho com Angola!
    Bons cheiros de terra molhada...
    Abraço.

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